Patrimônio Edificado em Caxias do Sul
Memória e esquecimento do Patrimônio Edificado em Caxias do Sul
Conhecer a história do patrimônio edificado da cidade de Caxias do Sul é descobrir um processo de memória e esquecimento ou de lembranças e apagamentos. Boa parte dos bens que hoje gozam de algum nível de proteção como patrimônio histórico no município estão ligados à cultura de imigração, fenômeno que marcou a história de Caxias do Sul a partir de 1875 e que legou à cidade exemplares arquitetônicos de diferentes usos: residencial, comercial, industrial e religioso. Por cerca de cem anos, contudo, nenhuma ação coordenada para a preservação desse patrimônio material foi realizada, resultando na perda de diversas edificações que hoje poderiam servir para contar a história da cidade, contribuir para a economia local como atrativo turístico e evidenciar a diversidade cultural na formação do município.
É apenas às vésperas da comemoração do centenário da imigração italiana (ocorrida em 1975) que surgiu um interesse maior pela memória da cidade, no âmbito da administração pública. Naquele contexto, foram realizadas ações para a reorganização do Museu Municipal, a criação do Arquivo Histórico Municipal e a inauguração do Museu Casa de Pedra. Ainda naquele período, foi criada a Comissão do Patrimônio Histórico de Caxias do Sul, a primeira do gênero no município.
Construída pelos irmãos Giacomo, Antonio e Luis Lucchese, que chegaram a Caxias em 1879, a antiga residência em pedra passou a ser transformada em Museu a partir de 1974 (data da foto). Acervo: Museu Municipal de Caxias do Sul.
No final daquela década, uma grande mobilização se tornou um marco pró-preservação do patrimônio na cidade: em 1979, a defesa contra a demolição do antigo Hospital Carbone reuniu entidades da sociedade civil e membros do poder público. A reunião das forças locais obteve sucesso, resultando na preservação da edificação histórica construída em 1890, que originalmente havia abrigado a Casa de Negócios de Vicente Rovea (imigrante italiano, antigo comerciante e intendente municipal). Naquele mesmo ano da mobilização, foi criado o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico Municipal (Compahc), diferenciando-se da comissão anteriormente criada por incluir a participação da sociedade civil. Anos após, em 1984, surgiu a primeira legislação sobre a matéria, e foram efetuados tombamentos a nível municipal, sendo o primeiro o da antiga Livraria Saldanha (comércio estabelecido por migrante de origem portuguesa).
Livraria Saldanha à época de seu funcionamento. No topo da edificação, estátuas de três musas: pintura, literatura e música. Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
A nova legislação veio tardiamente, e o seu alcance foi limitado. Muitos exemplares significativos da arquitetura já haviam sido demolidos, destacando-se as casas de madeira do final do século 19 e início do século 20 que remetiam à memória da imigração.Outras edificações, em alvenaria e de estilo eclético, que simbolizavam o desenvolvimento da cidade, deram lugar a arranha-céus, em período no qual a cidade se verticalizava rapidamente. Nesse cenário, a ausência de referências materiais sobre a origem da cidade era preenchida por falsos-históricos, como a construção da Réplica de Caxias em 1885, um conjunto de cópias de casas primitivas do tempo da colonização inaugurado como atrativo para a Festa da Uva de 1978.
Fachada para a rua Dr. Montaury do Banco Nacional do Comércio, imponente edificação de estilo eclético demolida em 1979. Data da foto: década de 1940. Fonte:Documentário Histórico de Caxias do Sul, de Duminiense Paranhos (1950).
Tomada a partir do interior do antigo Banco Nacional do Comércio, em ruínas. Ao fundo, o contraste com a cidade verticalizada, e vendo-se aquele foi considerado o primeiro “arranha-céu” de Caxias do Sul, o prédio de seis pavimentos da Metalúrgica Abramo Eberle (com a réplica da antiga funilaria, em madeira, na cobertura). Data: 1979. Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
Um filme-reportagem sobre a construção da Réplica de Caxias, produzido pela Michelin Filmes, pode ser visualizado no acervo digitalizado do Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS: https://youtube.com/watch?v=2w5fEyM56ms
A extensão das perdas foi ainda maior se pensado no apagamento da memória da presença indígena no território de Caxias do Sul. A partir de relatos orais, o memorialista caxiense João Spadari Adami indica em seus estudos a existência de ocupação kaingang na área da atual Praça da Bandeira, local que passou por aterramento e obras de urbanização a partir dos anos de 1940, o que hoje dificulta projetos de escavação arqueológica.
O patrimônio industrial da cidade foi outro que passou por esquecimentos nos anos de 1980, ainda que a discussão sobre a preservação do patrimônio histórico já estivesse mais avançada na cidade. Caso emblemático disso foi a perda de diversas edificações que integravam o complexo da antiga Cantina Antunes, uma das mais importantes vinícolas instaladas na cidade. Apesar de intensos debates e mobilizações, a inércia do poder público no período resultou no agravamento do estado de conservação dos prédios, em seguida demolidos. Apesar disso, algumas construções resistiram e foram transformadas décadas mais tarde em locais dedicados à cultura e às artes, notadamente o Centro de Cultura Ordovás e o Ponto de Cultura Casa das Etnias, também bons exemplos da reutilização e ressignificação das construções históricas.
Ruínas da Cantina Antunes em 1985: as pipas de vinho no interior da cantina destelhada contrastam com o moderno Edifício Parque do Sol ao fundo. Autoria: Aldo Toniazzo. Acervo: Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS.
Ainda na linha das perdas, um dos episódios mais marcantes na cidade foi o do Cine Teatro Ópera, local que sediou por décadas apresentações artísticas de ópera, peças teatrais, eventos sociais e exibição de filmes. A sua história, que sempre deve ser lembrada, teve fim em 1994, após um processo de descaso que culminou em um incêndio e a destruição completa do prédio. A este exemplo, somam-se tantos outros, datados também dos últimos 30 anos, tais como: a residência da família Raabe, o ateliê Zambelli, a Chácara Eberle, a residência da família Rigotto.
Um velho casarão de madeira com lambrequins no beiral, em foto de 1986. Este exemplar então preservado, construído pela família Casara em 1927, foi destruído em um incêndio em 2018, sendo procedido o seu destombamento. Autoria: Aldo Toniazzo. Acervo: Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS.
Ainda que diante dessa história de esquecimentos e apagamentos, há o que se celebrar quanto ao patrimônio edificado de Caxias do Sul. Mobilizações, organização da sociedade civil e do poder público, assim como avanços na legislação, legaram à cidade o atual conjunto de 53 edificações tombadas e outras cerca de 500 registradas em inventário, este que é uma espécie de estágio preliminar na garantia da preservação. Certamente, ainda é necessário se avançar muito nas políticas voltadas ao tema, seja para a manutenção dos bens já patrimonializados como para desenvolver um melhor entendimento de que o tombamento pode trazer benefícios para todos – proprietários, sociedade e município. Acima de tudo, deve prevalecer o interesse público e coletivo a respeito dos bens históricos, que dizem respeito à memória coletiva dos grupos sociais, que contribuem para o seu bem-estar, para a economia, o meio ambiente, o turismo e a identidade cultural dos moradores da cidade.
A Divisão de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural - DIPPAHC é o órgão da Secretaria Municipal da Cultura encarregado de cumprir a legislação relacionada à Proteção do Patrimônio Histórico e Cultural, especialmente a Lei nº 7.495, de 19 de outubro de 2012 ,e o decreto nº 16.581, de 24 de julho de 2013, que a regulamentou. Para conhecer os bens tombados de Caxias do Sul acesse o link e confira a relação.
Este conteúdo integra o projeto Patrimônios, lendas e marcos de Caxias do Sul, financiado pela Lei Paulo Gustavo de Caxias do Sul.
Produção, organização e Curadoria: Marivania Sartoretto
Texto produzido por: Anthony Beux Tessari Mestre e Doutorando em História
Revisão do texto: Paula Valduga
Referências