Memórias da Terceira Légua por Mário Boff
Boa parte da história da Terceira Légua está guardada na excelente memória de Mario Boff, um dos seus moradores. Com 85 anos em 2024, ele cita datas com facilidade. “A Terceira Légua foi fundada em 1876 com 115 famílias”, diz. Em seguida, emenda a sua história: “Eu nasci em 12 de maio de 1939, o ano em que começou a guerra, e lembro de quando ela terminou. Com sete anos, lia o jornal entendia o que estava acontecendo”. Passar um tempo conversando com ele é voltar no tempo e conhecer mais do que está registrado nos vários livros sobre essa localidade. Seu Mário tem também os bastidores e aquelas “lendas” que seguem sendo alimentadas, sejam totalmente verdadeiras ou não.
Ele lembra que, por muito tempo, era preciso buscar o padre “em Caxias” - como era chamado o centro - com um charrete para que fossem rezadas missas na Terceira Légua. “Eu conheci Caxias do Sul com 28 mil pessoas, em 1948. Onde fica a Igreja dos Capuchinhos era só mato e em São Pelegrino não tinha energia elétrica. Eu ia para lá de carreta com o meu irmão para vender coisas”, relata. Essa foi uma das suas primeiras atividades, e ele trabalhou muito durante a sua vida. Na época que atuava com esse comércio, o então centro tinha poucas casas de alvenaria, elas ainda estavam começando a surgir. “Estavam construindo a Rua Tronca e a maioria das casas eram de madeira”, complementa.Outra memória que tem do trabalho é a primeira nota de mil cruzeiros que recebeu. Os padres paulinos chegaram à Terceira Légua em 1948 e, em 1954, Seu Mário foi colher uva para eles e recebeu o pagamento. “A nota de mil era vermelha, eu lembro bem”. A safra da uva, inclusive, era um momento de bastante movimento na localidade. Em frente a cooperativa, formavam-se filas de carroças.
Com a chegada dos padres na Terceira Légua, a comunidade toda se reuniu para contribuir na construção do prédio que eles ocupariam. Atualmente, o espaço é usado pela Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha (Efaserra) e guarda muitas lembranças nas suas paredes. Entre elas, está o fato de faltar lugar para acomodar acomodar os cavalos que transportavam pessoas de diversos lugares para participar das missas.Segundo Seu Mário, eram celebradas duas missas a cada domingo, porque havia muita gente. “Os padres paulinos chegaram, organizaram a paróquia e depois venderam tudo e foram embora porque precisavam de energia elétrica trifásica para instalar uma gráfica e não conseguiram”, completa.
Mário Boff em frente onde era antigo armazém, mercado da 3ª Légua também. Foto: Marivania Sartoretto
Eles já tinham tradição com gráficas no país e chegaram na Terceira Légua para desenvolver essa atividade. Desde 1950, articularam a busca pela energia elétrica trifásica. Como não aconteceu, acabaram vendendo toda a estrutura para os padres claretianos. Antes disso, viveram uma história que ficou marcada na memória dos moradores. No dia 17 de setembro de 1949, conta Seu Mário, um raio caiu na torre da igreja às 6h da manhã, deixou uma pessoa morta, os postes de energia rachados e muitos fios em pedaços. Também deixaram um legado que segue vivo até a hoje: as Irmãs Pastorinhas. Elas foram chamadas para a Terceira Légua pelos padres paulinos e começaram o seu trabalho em uma pequena casa. Com o tempo, foram crescendo e, atualmente, têm também uma pousada, que funciona paralelamente à atuação pastoral.
Voltando à busca pela energia elétrica trifásica, ela acabou chegando apenas em 1961. "Foi a coisa mais importante que conseguimos naquela época”, atesta Seu Mário. Com ela, chegou também a televisão, trazendo junto suas histórias pitorescas. Poucas pessoas tinham o aparelho, e as demais saíam para tentar assistir em vizinhos. No seminário tinha um aparelho e o “programa do carequinha” fazia sucesso durante as tardes. “Os padres cobravam para irmos no seminário assistir”, conta ele, reforçando que os claretianos fizeram muito pelo lugar, especialmente pela educação.
Além de ter trabalhando com os padres nos parreirais, o que lhe traz à memória cenas de padres de batida dando sulfato, Mário Boff também atuou em outras áreas. Paralelamente ao dia a dia na lida da uva, ele tinha uma sapataria. Fazia o que define como “sapatão para a colônia, em couro, chinelos e sapatos de passeio”. Para fazer seu negócio progredir, comprou uma máquina de costura alemã e aplicou com disciplina o conhecimento que havia obtido com seu primo, na época em estava no Exército. “Eu servi em Caxias, ali na Rio Branco, e tinha um primo sapateiro. Ele trabalhava até tarde da noite, então eu ia lá depois das atividades para aprender”, explica.
Na época em que tinha a sapataria e também cuidava da uva, inclusive dos parreirais que herdou com a morte do pai, Seu Mário diz que “trabalhava como um louco”. Usava arado para preparar suas terras para plantar milho e trigo e buscava diferentes fontes de renda, como a construção civil, que sucedeu a atuação com sapatos. “Com 34 anos, eu comecei a trabalhar como pedreiro. Eu entendia também de carpintaria e tinha bastante serviço. Fiz prédios em Caxias e aqui na Terceira Légua. A minha casa, o salão paroquial e muitos outros prédios foram feitos por mim. O salão nós levantamos em 27 dias e lembro que houve uma nevasca”, acrescenta. Ele também atuava no cemitério e ergueu cerca de 40 capelinhas. “Todo mundo falava do nosso serviço”.
Além de toda a dedicação ao trabalho, Seu Mário também era presente nas ações da comunidade e na busca por melhorias. Foi um dos líderes do clube de futebol e fez muito pela construção e manutenção do campo. “Investi dinheiro meu para ajudar a pagar as despesas”, diz. Resolveu desde cercamento até questões burocráticas como mudanças no estatuto, seguindo os passos do pai, que foi presidente do clube, fundado em 1938, por diversas gestões. Vem dele e da sua mãe essa dedicação ao trabalho e à comunidade. Seu Mário teve o exemplo em casa e conta que sua mãe atuava como costureira, uma profissão que aprendeu no Lanifício de Galópolis. Eram 10 irmãos e ela cuidava de tudo, além de ainda atuar como enfermeira na comunidade.
Mário Boff em frente a uma das casas que construiu. Foto: Marivania Sartoretto
Ao ver essa diversidade de atividades, seguiu os passos dos pais e teve, também, um mercado. Lembra de uma história curiosa sobre isso. Em uma ocasião, saindo do Fórum de Caxias do Sul, foi chamado por uma funcionária. Ele fez questão de contar que lembrava dele como o vendedor de produtos que ela comprava na Terceira Légua. “Ela me disse que comprava chocolate, bala, perfumes. Eu lembro que o perfume que eu vendia vinha de São Paulo e se chamava Diamante Negro”, detalha. Hoje, ainda vive na comunidade e responde rápido ao ser questionado sobre o que acha mais bonito por lá: “a gruta”. É claro que esse atrativo também tem as marcas dele. Na época em que atuava como pedreiro, fez diversos serviços por lá, sempre com o capricho que lhe era peculiar. “Não era qualquer funcionário que trabalhava comigo, precisava ser tudo muito bem feito”, reforça.
Houve um grande envolvimento da comunidade no preparo daquele lugar especial. Seu Mário relata que inicialmente fizeram uma pequena escada de madeira, e o bispo da época, Dom José Barea, desceu para ver como estavam as obras. O espaço era cheio de pedras e toda a gurizada da paróquia foi convocada a ajudar a retirá-las. A inauguração foi marcada para o dia 3 de outubro de 1948 e a semana anterior havia sido toda de chuva e cerração. Na véspera, Seu Mário foi na barbearia para se preparar para a grande festa e o comentário era o clima ruim. “Estava todo mundo falando que a festa estava estragada, que com cerração fechada, ninguém iria. Mas o dia seguinte amanheceu sem uma nuvem no céu”.
Muito desse legado passou para a geração seguinte, especialmente a dedicação ao trabalho. A filha mais velha, Jaqueline, por exemplo, começou sua jornada profissional dando aulas na paróquia das Irmãs Pastorinhas. Pouco tempo depois, em 1987, Jaqueline foi contratada no Colégio São Carlos. Estamos em 2024 e ela segue sendo professora lá, mesmo aposentada. As lições de trabalho duro e responsabilidade foram passadas, e ele agora conta histórias e admira a Terceira Légua da casa que ergueu com as suas próprias mãos.
Este conteúdo integra o projeto Patrimônios, lendas e marcos de Caxias do Sul, financiado pela Lei Paulo Gustavo de Caxias do Sul.
Produção, organização e Curadoria: Marivania Sartoretto
Texto: Paula Valduga
Fonte: Relato oral de Mário Boff
Fotos: Marivania Sartoretto