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Indígenas 2 -  Os Jê

Indígenas 2 - Os Jê

Indígenas 2 - Os Jê

Figura 1: Cena hipotética de uma aldeia de casas subterrâneas fora da mata. Ilustração de Rafael Dambros, com orientações de Rafael Corteletti.

Os Povos Jê

Alguns milhares de anos depois, uma população ancestral, falante das línguas do tronco Macro-Jê, partiu da Amazônia em direção ao Sul, segundo arqueólogos, linguistas, etnólogos e antropólogos. Essas pessoas gradualmente ocuparam as terras centrais do Brasil e, posteriormente, colonizaram o planalto e o litoral dos atuais estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, até chegarem ao atual estado do Rio Grande do Sul (Wüst e Barreto,1999; Araújo, 2007). A jornada foi longa, e estima-se que tenham se passado cerca de 3.000 anos desde a partida da zona equatorial até a chegada às terras subtropicais.

Sugere-se que a migração de populações do tronco linguístico Macro-Jê tenha começado há pelo menos 5.000 anos (Urban, 1992), com a chegada de forma gradual às terras meridionais ocorrendo por volta de 2.200 anos atrás (Iriarte et al., 2017) e, assim, habitando as terras altas e o litoral sul brasileiro. Os descendentes desta história são os falantes de línguas da família Jê, especialmente o povo Kaingang e o povo Xokleng. A arqueologia dos povos Jê do sul, dessa forma, remonta a aproximadamente 2.200 anos antes do presente e se estende até o início do século XX (Corteletti, 2024). Essa cultura é caracterizada principalmente por pequenas vasilhas de cerâmica com paredes finas (Figura 2), construções com movimentação de terra nas áreas frias do planalto (incluindo casas subterrâneas e complexos funerários com montículos e recintos), além de enterros coletivos em cavernas e arte rupestre (Corteletti e Iriarte, 2018).

Na zona do Planalto, a cultura material desses povos é marcada pela construção de estruturas arquitetônicas que têm sido objeto de estudo da arqueologia brasileira há mais de cinco décadas. Essas estruturas são denominadas de diferentes maneiras pelos arqueólogos: alguns as chamam de “casas subterrâneas”, enquanto outros preferem os termos “buracos de bugre” ou “tocas de bugre”. Existem também denominações mais técnicas, como “estruturas semissubterrâneas” ou “estruturas de piso rebaixado”. Aos olhos de um observador casual, essas estruturas podem parecer apenas crateras, geralmente circulares, encontrados em meio à floresta ou, ocasionalmente, em áreas de campo natural. Os tamanhos desses vestígios variam consideravelmente, tanto em relação ao diâmetro quanto à profundidade. Os maiores podem ter mais de 15 metros de diâmetro e 5 metros de profundidade (Corteletti 2008) (Figura 1). Em Caxias do Sul e região muitas aldeias de casas subterrâneas foram registradas e muitas escavadas, ainda nos anos 1960 no Distrito de Santa Lucia do Piaí, na localidade de Água Azul, no famoso “Sítio Vergani”. Segundo levantamento feito nos anos 2000 haviam sido registradas 178 casas subterrâneas em 31 sítios arqueológicos no município de Caxias do Sul (Corteletti 2008). Esse mesmo estudo demonstrou que 51 delas já haviam sido destruídas, muitas das vezes pelo crescimento desordenado da cidade e pela falta de políticas de preservação deste patrimônio. Mais recentemente, nos anos 2000, pesquisas arqueológicas e escavações foram realizadas nos municípios vizinhos de Vacaria (Schmitz et al., 2002), São Marcos (Rogge e Schmitz,2009) e Bom Jesus (Copé, 2006).

Além desses vestígios arquitetônicos visíveis, a ocupação desses grupos também é comprovada e estudada pela arqueologia por meio de sítios funerários e sítios superficiais. Os sítios funerários podem ser encontrados tanto em grutas quanto praças de cerimônias posicionadas próximas das aldeias de casas subterrâneas. Na região de Caxias do Sul, os lugares de sepultamentos mais comumente encontrados são as grutas, como, por exemplo, a conhecida “Toca Santa”(RS79/A-49) e a “Gruta do Palanquinho” (RS124CXS) (Figura 3), ambas localizadas no Distrito da Criúva. Em contraste, um pouco mais ao norte, na região do Rio Pelotas, os sítios funerários mais registrados foram praças de cerimônias construídas com movimentação de terra, os chamados “danceiros”. Nesses locais, também conhecidos como complexo de montículos e recinto, os vestígios humanos recuperados são de pessoas cremadas.

Figura 3. Imagem de satélite da região da Criúva e São Marcos com localização de sítios arqueológicos mapeados.Fonte Corteletti, 2006.

Os sítios superficiais são mais raros e podem estar associados a diversas atividades cotidianas. São locais encontrados próximos aos sítios habitacionais, muitas vezes nas rotas que conectam uma aldeia e outra (Corteletti 2012), e podem servir como acampamentos temporários, oficinas para o trabalho de lascamento de pedra ou fabricação de cerâmica (que seriam usadas como utensílios domésticos) ou até mesmo, como áreas de cultivo (Figuras 4 e 5). A raridade desses sítios arqueológicos está diretamente relacionada à sua fragilidade. Um sítio desse tipo pode ser uma pequena área com terra escura e lascas de pedra, com apenas alguns metros quadrados. Qualquer intervenção posterior na paisagem, como o cultivo agrícola ou o desmatamento, pode danificar ou destruir esses sítios de forma irreversível.

Figura 4. Formas de vasilhas cerâmicas encontradas nos sítios arqueológicos dos povos Jê do Sul (relacionadas a tradição Taquara-Itararé). Fonte: Schmitz e Becker, 1991

Figura 5. Decorações plásticas encontradas nas cerâmicas dos povos Jê (relacionadas a tradição Taquara-Itararé). Fonte: Schmitz e Becker, 1991.

Projetos arqueológicos nas últimas duas décadas têm revelado algumas tendências cronológicas gerais no desenvolvimento dos povos Jê do Sul. As datações de radiocarbono disponíveis indicam que os sítios arqueológicos dos Jê começaram a se disseminar no segundo milênio antes do presente, tornando-se mais comuns por volta de 1500 anos antes do presente e atingindo o pico cerca de 1000 anos antes do presente. Por volta de 1000 anos antes do presente, também observamos o surgimento de complexos de montículos, recintos e casas subterrâneas de grandes dimensões na região dos rios Pelotas (RS) e Canoas (SC) (Copé, 2006; Corteletti, 2012; Iriarte et al., 2013; Schmitz et al., 2013).

Este conteúdo integra o projeto Patrimônios, lendas e marcos de Caxias do Sul, financiado pela Lei Paulo Gustavo de Caxias do Sul.

Produção, organização e Curadoria: Marivania Sartoretto

Texto produzido por: Rafael Corteletti Mestre em História e Doutor em Arqueologia

Revisão Texto: Paula Valduga

Referências

Araújo, A.G.M. (2007). A tradição cerâmica Itararé–Taquara: Características, área de ocorrência e algumas hipóteses sobre a expansão dos grupos Jê no sudeste do Brasil. Revista Arqueologia 20:9–38. Disponível em: https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/SAB/article/view/225

Copé, S.M. (2006). Les grands constructeurs precoloniaux du plateau de sud du Bresil: etude de paysages archeologiques a Bom Jesus, Rio Grande do Sul, Bresil. Tese de Doutorado. Universidade de Paris. 395p. Disponível em: https://www.academia.edu/59658335/Les_grands_constructeurs_pr%C3%A9coloniaux_du_plateau_du_sud_du_Br%C3%A9sil_%C3%A9tude_de_paysages_arch%C3%A9ologiques_%C3%A0_Bom_Jesus_Rio_Grande_do_Sul_Br%C3%A9sil

Corteletti, Rafael. (2006). Casas Subterrâneas em Caxias do Sul: Conservação, Distribuição e Implantação. Dissertação de Mestrado. UNISINOS. 216p. Disponível em http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.24634.95689

Corteletti, Rafael. (2008). Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul. Ed. Nova Prova, Porto Alegre, 200p. Disponível em http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.1.4097.5129

Corteletti, Rafael. (2012). Projeto Arqueológico Alto Canoas- PARACA: Um estudo da Presença Jê no Planalto Catarinense. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. 323p. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde-19042013-093054/pt-br.php

Corteletti, Rafael. (2024).Paisagens Jê: uma arqueologia sobre povos indígenas do Sul do Brasil. Ed. Habitus, Florianópolis, 300p. Disponível em http://www.etnolinguistica.org/biblio:corteletti-2024-paisagens

Corteletti, R., Iriarte, J. (2018). Recent advances in the archaeology of Southern proto-Jê People. C. Smith (ed.) Encyclopedia of Global Archaeology, 1a. Edição. Springer Publishing. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/327390630_Recent_Advances_in_the_Archaeology_of_the_Southern_Proto-Je_People

Iriarte, J.; DeBlasis, P.; DeSouza, J.G.; Corteletti, R. (2017). Emergent Complexity, Changing Landscapes, and Spheres of Interaction in Southeastern South America During the Middle and Late Holocene. Journal of Archaeological Research, 25:251–313. Disponívelem: https://link.springer.com/article/10.1007/s10814-016-9100-0

Iriarte, J., Copé, S. M., Fradley, M., Lockhart, J. J., Gillam, J. C. (2013). Sacred landscapes of the southern Brazilian highlands: Understanding southern proto-Jê mound and enclosure complexes. Journal of Anthropological Archaeology 32, 74–96.https://doi.org/10.1016/j.jaa.2012.10.003

Schmitz, P.I., Becker, Í.I.B. (1991). Os primitivos engenheiros do planalto e suas estruturas subterrâneas: a tradição Taquara.Arqueologia do Rio Grande do Sul, Brasil, Documentos 05, IAP-UNISINOS, São Leopoldo, pp. 67-105. Disponível em:https://www.anchietano.unisinos.br/publicacoes/documentos/documentos05.pdf

Schmitz, P.I., Rogge, J.H., Novasco, R.V., Mergen, N.M., Ferrasso, S. (2013). Boa Parada: um lugar de casas subterrâneas, aterros-plataforma e danceiro. Pesquisas: Antropologia 70: 133-195. Disponível em: https://www.anchietano.unisinos.br/publicacoes/antropologia/volumes/070/070.html

Schmitz, P.I., Rogge, J.H., Rosa, A.O., Beber, M.V., Mauhs, J., Arnt, F.V. (2002). O Projeto Vacaria: Casas Subterrâneas no Planalto Rio-Grandense. Pesquisas, Antropologia, IAP-UNISINOS, São Leopoldo, 58, 11-105. Disponível em: anchietano.unisinos.br/publicacoes/antropologia/volumes/058/058.html

Rogge, Jairo H.; Schmitz, Pedro I. 2009. Pesquisas arqueológicas em São Marcos. Pesquisas, Antropologia 67: 23-132. Disponível em: https://www.anchietano.unisinos.br/publicacoes/antropologia/volumes/067/Rogge%20e%20Schmitz.pdf

Urban, G. (1992). A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas, in: Carneiro da Cunha, M. (Ed.), História dos índios no Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, pp. 87-102.Disponível em: http://www.etnolinguistica.org/hist:p87-102

Wüst I, Barreto C. The Ring Villages of Central Brazil: A Challenge for Amazonian Archaeology.Latin American Antiquity. 1999;10(1):3-23. https://doi.org/10.2307/972208