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A preparação dos alimentos, a dieta e a cozinha dos Povos Jê

A preparação dos alimentos, a dieta e a cozinha dos Povos Jê

A preparação dos alimentos, a dieta e a cozinha dos Povos Jê

Figura 1. Fibras de caraguatá com feijão, um prato típico Kaingang. Foto de Juracilda Veiga.

Algumas amostras microbotânicas retiradas dos artefatos recuperados nas escavações realizadas em Urubici, SC,não apresentaram nenhum grão de amido, em contrapartida apresentaram fitólitos. Porém, todos os potes analisados apresentaram microvestígios de plantas comestíveis, indicando que a maioria deles foi usada para a preparação de alimentos.As exceções são o Pote S, um pequeno copo e provavelmente o Pote B, uma tigela. Entre os grãos de amido encontrados no Pote S, a maior concentração foi de milho(Corteletti 2012). Este dado indica que o copinho poderia estar sendo usado para beber, entre outras, uma bebida a base de milho (Figura 2). 

 
Figura 2. Pote S, o copinho de cerâmica em que foi encontrada grande concentração de grãos de amido de milho.Datação aproximada de 650 anos atrás. Fonte: Corteletti (2012). Foto de Rafael Corteletti.

Em Ambrosetti (1895:330) há referência a duas bebidas alcoólicas feitas com milho: goio fá, o milho é fermentado em “panelas” de cerâmica com água quente e deixado próximo do fogo; e goiokupri, o milho é ligeiramente assado, depois macerado e colocado próximo ao fogo em jarras de cerâmica cheias de água até o dia seguinte, quando é mascado para acelerar a fermentação e cuspido novamente nas jarras. Noelli (1999:243) menciona o consumo de kifé, uma bebida alcoólica fermentada a base de milho e mel, produzida pelos Kaingang para ser saboreada em festas.
Alguns grãos de amido dessa coleção foram encontrados macerados, indicando provavelmente algum tipo de moagem na preparação do alimento (Corteletti 2012). Essa suposta maceração poderia ocorrer previamente, na preparação da farinha (fosse ela de milho ou mandioca) ou até mesmo dentro do pote durante a preparação do alimento. Alguns grãos de amido encontrados foram fervidos. A maior parte deles não foi identificada, exatamente por terem sido modificados no processo de ebulição (Corteletti 2012) (Figura 3). Segundo Henry et. al. (2008:916), embora os grãos de amido fiquem muito deteriorados para serem identificados, ao menos eles podem ser reconhecidos como grãos de amido fervidos, nos fornecendo uma maneira para identificar a prática do cozimento por fervura no registro arqueológico.

 
Figura 3. Tafonomia dos grãos de amido encontrados nas vasilhas cerâmicas recuperadas nas escavações do sítio Bonin, Urubici, SC. Fonte. Corteletti2012.

A culinária tradicional Kaingang pode auxiliar a interpretar algumas das questões que envolvem a preparação dos alimentos encontrados na aldeia de casas subterrâneasde Urubici, SC. Os agricultores Kaingang Fermino Bento de Oliveira e sua esposa Cenilda Ventura, destacam que hácaracterísticas agronômicas e culinárias próprias para cada uma das variedades dos milhos – palha roxa, sabugo fino, catetinho, pipoca e branco dentado – assim como para os vários feijões escolhidos. O milho é muito apreciado, sendo utilizado de diversas maneiras: para fazer o pise (comida típica Kaingang à base de farinha de milho torrada nas cinzas), a kajyka (canjica), o em? (bolo ou pão preparado nas cinzas, às vezes com massa fermentada), gãru (pipoca) e o entô (milho cozido na brasa). A diferença também está no sabor do milho quando consumido verde (gãrtành) (Ballivián, Ventura & Bento de Oliveira 2007:8)(Figura 4).

 
Figura 4. Cenilda Ventura e Fermino Bento de Oliveira mostrando alguns milhos antigos que permanecem nas mãos do povo Kaingang. Fonte: Ballivián, Ventura & Bento de Oliveira 2007.

Estas inferências nos levam a refletir sobre o processamento do alimento, se ele é ingerido cru, assado, fervido ou até mesmo podre. No caso da preparação de um prato com farinha, como o em?, temos a secagem do grão, a moagem, a preparação da massa do bolo, que pode ser fermentada (ou seja, levemente apodrecida) e o posterior cozimento sob as cinzas.Da mesma forma que o preparo do pinhão , é um procedimento extremamente elaborado e, provavelmente, carregado de elementos culturais da identidade Jê. Por outro lado, há alimentos simplesmente assados (entô), ou simplesmente fervidos (kajyka), ou ingeridos cru (gãrtành). Partindo de exemplos sul-americanos, Levi-Strauss (1970) infere que há um triângulo culinário expresso pelo consumo de alimentos crus, cozidos ou podres que reflete oposições de natureza cosmológica ou sociológica. Ao examinar uma série de mitos ele se deparou com a existência de categorias internas ao cozido, ou seja, os alimentos assados e os fervidos. O contraste inerente ao que é cozido e o que é assado é explicitado pelo fato de que o alimento assado está em contato direto com o fogo (sem um mediador), enquanto o alimento cozido é resultado de uma dupla mediação: pela água em que é submerso e pelo recipiente que contém os dois. Em função desta oposição, Levi-Strauss coloca o assado ao lado da natureza e o fervido ao lado da cultura. O alimento fervido é um produto cultural porque é necessário utilizar uma vasilha, que é um objeto cultural. Mais do que isso, de um ponto de vista simbólico, a cultura exerce a mediação entre a humanidade e o mundo físico e, assim sendo, o cozimento por ebulição é uma mediação através da água, entre o alimento que a humanidade incorpora e o fogo, um elemento do mundo físico. Entre os inúmeros exemplos utilizados para explicitar a oposição entre fervido e assado vale citar a referência de Levi-Strauss às observações feitas por Jules Henry (1964), que anotou que os Xokleng de Santa Catarina “proíbem carne cozida ao viúvo e viúvo, bem como a quem tenha matado um inimigo (...). A escolha dos alimentos cozidos poderia assim conotar o fortalecimento, a dos assados, o relaxamento, dos laços familiares ou sociais” (Levi-Strauss 1970:421).

Para saber mais sobre a culinária Kaingang acesse:

Centro de Memória Kaingang - https://cmckaingang.blogspot.com/p/comidas-tipicas-kaingang.html

Este conteúdo integra o projeto Patrimônios, lendas e marcos de Caxias do Sul, financiado pela Lei Paulo Gustavo de Caxias do Sul.

Produção, organização e Curadoria: Marivania Sartoretto

Texto produzido por: Rafael Corteletti Mestre em História e Doutor em Arqueologia

Revisão Texto: Paula Valduga

Referências

Ambrosetti, J.B. (1895). Los indios Kaingángues de San Pedro (Misiones), con un vocabulario. Buenos Aires: Revista del Jardin Zoológico de Buenos Aires, tomo II, ent. 10, p. 305-387.Disponível em http://www.etnolinguistica.org/biblio:ambrosetti-1895-kaingangues

Ballivián, José M.P.; Ventura, Cenilda;&Bento de Oliveira, Fermino. (2007). In Ti F?S?https://aspta.org.br/files/2019/10/artigo1-1.pdf

Corteletti, R. (2012). Projeto Arqueológico Alto Canoas- PARACA: Um estudo da Presença Jê no Planalto Catarinense. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. 323p. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde-19042013-093054/pt-br.php

Henry, Jules. (1964). Jungle People. A Kaingáng Tribe of the Highlands of Brazil. Vintage Books. New York. 215p.Disponívelemhttps://archive.org/details/junglepeoplekain0000henr

Henry, A.G, Hudson, H.F. & Piperno, D. (2008). Changes in starch grain morphologies from cooking. Journal of Archaeological Science 36 (2009) 915–922. https://doi.org/10.1016/j.jas.2008.11.008

Levi-Strauss, Claude.(1970). Mitológicas. El Origen de las Maneras de Mesa. SigloVeintiuno Editores. México. 495p.

Noelli, Francisco S. (1999). A Ocupação Humana na Região Sul do Brasil: arqueologia, debates e perspectivas 1872 - 2000. Revista USP, 44.São Paulo. p.218-269. Disponível em https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/29849